No Direito Romano havia leis que se referiam ao reconhecimento
dos direitos de um recém-nascido e em que circunstâncias
esses direitos deveriam ser garantidos ou poderiam ser negados.
Dentre as condições para a negação do
direito, a ausência da chamada "vitalidade" e distorções
da forma humana eram as principais.
A Forma Humana no Direito Romano
Como exemplo poderemos mencionar que, tanto os bebês nascidos
antes do 7º. mês de gestação quanto os
que apresentavam sinais daquilo que os romanos chamavam de "monstruosidade"
, não tinham condições básicas de capacidade
de direito.
Alguns abalizados estudiosos do Direito Romano deixam-nos a nítida
impressão de que essa negação dos direitos
não se limitava à eventual similaridade com algum
animal, principalmente no rosto e na deformação de
membros, mas também à ausência de membros.
O Dr. José Carlos Moreira Alves, em seu livro "A Forma
Humana no Direito Romano" afirma que a solução
encontrada pelas leis romanas, na interpretação da
Lei das Doze Tábuas, que naquelas épocas não
contava com uma medicina-ciência ao seu lado, ou mesmo com
sólidos princípios de defesa da vida humana incipiente,
advinha de uma Lei Régia atribuída ao fundador de
Roma, Rômulo, nos primórdios da vida formal da cidade.
De acordo com ela, estava proibida a morte intencional de qualquer
criança abaixo de três anos de idade, exceto no caso
dela ter nascido mutilada, ou se fosse considerada como monstruosa.
A Determinação da Lei das Doze Tábuas
A Lei das Doze Tábuas, que era mais recente, mais estudada
e mais baseada na experiência de séculos de organização
e ordenamento da incipiente e pujante cidade, previa para os casos
dessa natureza a morte imediata, ao nascer.
Em
sua obra "De Legibus", Cícero (Marcus Tullius Cícero
- 106 a 43 A.C.) comenta com clareza que, na Lei das Doze Tábuas
havia uma determinação expressa para o extermínio
de crianças nascidas com deformações físicas
ou sinais de monstruosidade. Em sua linguagem original a famosa
lei determinava o seguinte:
Tábua IV - Sobre o Direito do Pai e do Casamento. - Lei III
- O pai de imediato matará o filho monstruoso e contra a
forma do gênero humano, que lhe tenha nascido recentemente.
("Tabula IV - De Jure Pátrio et Jure Connubii ..............
Lex III - Pater filium monstrosum et contra formam generis humanae,
recens sibi natum, cito necato ").
Com o passar dos tempos, para a morte do recém-nascido ou
para sua "exposição", o pai deveria mostrar
a criança a pelo menos cinco vizinhos, para que fosse de
certa forma certificada a anomalia ou a mutilação.
Acontecia também que o "pater famílias",
de acordo com os poderes previstos no "patria potestas",
em vez de determinar o afogamento do recém-nascido pela própria
parteira, poderia também mandar expor a criança em
locais próximos ao rio Tibre, ou em alguns outros lugares
considerados como sagrados, tais como templos e bosques, dedicados
aos deuses romanos.
Providências Práticas, Sem Ódio
Por
sua vez, Sêneca (Lucius Annaeus Sêneca - 4 A.C. a 65
C.D.) comenta, em sua obra "De Ira", que os recém-nascidos
com deformidades físicas eram mortos no próprio momento
do parto, por afogamento. Ao escrever sobre o assunto, o grande
pensador e filósofo romano não faz menção
à validade ou adequacidade da lei em si mesma. Analisa somente
a necessidade de, em nossas vidas, fazermos tudo, mesmo as coisas
desagradáveis e chocantes, sem ira nem ódio.
Segundo Sêneca, devemos fazer tudo o que precisamos fazer
com naturalidade, eliminando da obrigação o aspecto
ódio. E ele cita alguns exemplos que eram bastante óbvios
para os romanos daquela época:
"Eliminai, então, do número dos vivos a todo
o culpado que ultrapasse os limites dos demais, terminai com seus
crimes do único modo viável... mas fazei-o sem ódio"...
..."Não se sente ira contra um membro gangrenado que
se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois,
trata-se de um rigor salutar. Matam-se os cães que estão
com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças
das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas.
Matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos. Se nascerem
defeituosos ou monstruosos, afogamo-los. Não é devido
ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as
coisas inúteis das saudáveis".
(...portentosos fetus extinguimus, líberos quoque; si debilis
monstrosique editi sunt, mergimus; nec ira, sed ratio est, a sanis
inutilia secernere - "De Ira", de Sêneca).
O Envolvimento da Medicina
Os problemas ocasionados por recém-nascidos com defeitos
físicos podiam afetar duramente as famílias romanas,
especialmente quando ocorriam coincidências misteriosas, segundo
foi relatado por Plutarco (45 a 125 D.C.):
... "no ano 280 de Roma, um temor supersticioso tinha invadido
toda a cidade, porque as mulheres grávidas davam à
luz crianças quase todas elas defeituosas e imperfeitas em
alguma parte do corpo" ("Publius Valerius Publicola",
de Plutarco).
Face à legislação romana vigente, toda baseada
na Lei das Doze Taboas, não se deve nutrir dúvida
alguma quanto ao destino desses recém-nascidos, seja pelo
afogamento, seja pela exposição às margens
do rio Tibre.
Sem saber o que fazer para resolver os problemas criados por essas
alegadas "coincidências", Publicola resolveu importar
o deus grego da medicina, por meio de uma delegação
especial para Epidauros, na Grécia, para conhecer os segredos
da medicina dos sacerdotes de Asclépios.
Por algumas dificuldades de silabação ou de pronúncia,
de Asclépios, o deus da medicina romana passou a se chamar
Esculápio.
Seu
templo, com instalações para abrigo de doentes e para
atividades de culto similares àquelas desenvolvidas em Epidauros,
foi localizado na Isola Tiberina, dedicada a Esculápio. Nela
foi construído um magnífico templo de Apolo e seu
acabamento externo, em pedra travertina, tinha a forma de um barco.
O visitante de hoje encontra no mesmo local do templo a Basílica
de São Bartolomeu. Se analisar com cuidado, notará
com certa estranheza bem no centro dos degraus do altar-mor, uma
antiga e artística boca do antigo "Poço de Apolo",
esculpida em mármore no século XI, mas devidamente
lacrada.
Essa ilhota famosa, que tem a forma de barco, ligada às suas
margens por pontes de aproximadamente 2.000 anos, passou a desempenhar
um papel vital e multissecular no abrigo de doentes e de pessoas
com deficiência. Sempre dedicada a esse mister, ainda hoje
nela existe um hospital famoso de Roma: o Hospital dos Fatte Bene
Fratelli.
O Destino das Pessoas com Deficiência em Roma
No entanto, é fundamental que tenhamos uma idéia mais
justa sobre esses assuntos na incipiente sociedade romana. É
preciso ficar claro que mesmo com a existência das leis, o
infanticídio legal não foi praticado com muita regularidade
nas várias etapas da existência de Roma Antiga. Crianças
malformadas, ou consideradas como anormais e monstruosas, eram,
com freqüência cada vez maior, expostas em cestinhas
enfeitadas com flores nas margens mais distantes do rio Tibre.
O que podia acontecer com elas? Os escravos e as famílias
plebéias mais pobres, que muitas vezes viviam de esmolas,
apossavam-se dessas crianças, criando-as para mais tarde
explorarem o compadecido e por vezes culpado coração
romano, obtendo esmolas volumosas.
Há uma interessante e quase desconhecida obra do pai do filósofo
Sêneca, ou seja, de Sêneca, o "Mestre da Retórica",
intitulada "Controvérsias" que, em seu capítulo
IV ("Sobre os Mendigos Aleijados") discute detalhadamente
esse assunto, falando inclusive sobre a verdadeira chantagem que
era feita por meio de crianças mendigas com marcantes lesões,
que batiam às portas de famílias patrícias
e cujos membros muitas vezes imaginavam que aquela criança
ou algum outro jovem que pedia esmolas poderia ser um filho ou parente
exposto anos antes nas margens do rio Tibre.
Além de esmolar nas ruas, praças e portas dos templos
da cidade, o destino das pessoas com deficiência mais severa
podia ser bem mais acabrunhador. Muitos homens cegos eram usados
como remadores nas travessias do rio Tibre. Adolescentes cegas eram
colocadas em prostíbulos. Segundo o historiador Durant, "existia
em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas
ou sem braços, de três olhos, gigantes, anões
e hermafroiditas" ("História da Civilização",
de Will Durant).
O Reconhecimento do Valor de Pessoas com Deficiência
No
entanto, apesar dessa situação de miserabilidade que
cercava crianças, jovens e adultos com deficiências
na Roma Antiga, houve casos destacados de cidadãos romanos
com deficiência que foram apreciados e que chegaram mesmo
a ocupar posições em variados pontos da História
Romana, sendo um dos mais notáveis o Censor Ápio Cláudio,
conhecido como "o Cego", responsável por muitas
obras públicas, inclusive pela Via Ápia, que chegou
até os nossos dias.
Sobre ele, em sua obra Cato Major, seu De Senectute Dialogus, Cícero
escreveu: "Ápio Cláudio, velho e cego (et senex
et coecus) responsabilizava-se por quatro filhos robustos e cinco
filhas, além de uma grande mansão e toda a sua clientela.
Mantinha um espírito tão tenso quanto um arco e não
se deixava subjugar pela velhice para se transformar num homem sem
energia. Mantinha também autoridade e poder sobre os seus.
Os seus escravos temiam-no, seus filhos o veneravam e todos o queriam
bem. Em seu lar reinavam os costumes dos ancestrais e a disciplina".
Um Relato Claro de Sêneca
Sêneca escreveu mais de 100 cartas a seu amigo Lucilius. Numa
delas ele analisa o problema das deficiências físicas
de natureza mais séria e os valores espirituais existentes
nas pessoas que viviam nessas situações. Fala especificamente
de Claranus, um ex-colega seu de escola, marcadamente doentio e
disforme. Escreveu Sêneca a Lucilius:
(Carta LXVI) "Eu acabo de encontrar meu ex-colega de escola
Claranus pela primeira vez em muitos anos. Não é preciso
que me diga que ele está mais velho, mas eu lhe digo que
eu o encontrei vigoroso em espírito e firme, apesar de estar
lutando com um corpo frágil e fraco. Porque a Natureza agiu
injustamente quando deu um domicílio pobre para uma alma
tão rara; ou talvez porque Ela queira nos provar que uma
mente forte pode ser feliz escondida sob qualquer forma exterior.
Seja o que for, Claranus supera todas as dificuldades e, por menosprezar
o próprio corpo, chegou a um estágio onde ele pode
menosprezar outras coisas também"... ..."De qualquer
modo, comecei a olhar Claranus de uma forma diferente. Ele me parece
simpático e está bem de corpo e de alma. Um grande
homem pode surgir numa choupana; da mesma forma que uma alma bonita
e grandiosa pode surgir num corpo feio e insignificante". ...
..."Eu acho que Claranus foi feito como um padrão, a
fim de que possamos entender que uma alma não fica desfigurada
pela feiúra de um corpo, mas, pelo contrário, um corpo
pode ser embelezado pela graça da alma".
("Cartas a Lucílius", de Sêneca).
(*) Otto Marques da Silva, autor de A Epopéia
Ignorada - A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem
e de Hoje.
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