As Deficiências Fìsicas
em Peças de William Shakespeare
|
Otto
Marques da Silva
(Coordenador Geral do
Centro de Referências FASTER)
|
Nascido no ano de 1564 e falecido em 1616, William
Shakespeare foi o maior poeta e dramaturgo inglês de todos os
tempos. Devido amúltiplas inserções de assuntos
ligados a anatomia, neurologia, fisiologia e áreas afins da
medicina em suas peças, há autores que têm a impressão
de que ele deve ter tido alguma formação médica.
O volume de citações que faz de lesões incapacitantes,
por exemplo, é bem expressivo. Há autores que comentam
sobre a influência de algum médico em seus trabalhos.
Embora sua filha Susanna tenha se casado com um médico (Dr.
Hall) no ano de 1607 - médico esse que pode ter informado seu
sogro quanto a alguns assuntos médicos - muito antes desse
casamento Shakespeare já havia escrito mais de 20 peças,
demonstrando um profundo conhecimento da medicina, da música,
da filosofia e de outros assuntos.
Em diversas de suas obras o leitor poderá encontrar casos de
fraturas graves, de mutilações e de deformidades congênitas
ou adquiridas.
Como é universalmente sabido, Shakespeare escreveu peças
imorredouras, repletas de poesia, tragédia, sabedoria, drama,
comédia e lançando de quando em quando frases simplesmente
lapidares.
Pelo menos pelos seus títulos, ou por terem sido imortalizadas
em filmes, todos podemos lembrar Romeu e Julieta, Hamlet, Sonho de
uma Noite de Verão, A Megera Domada, Rei Henrique V, Rei Lear,
Macbeth, Otelo e outras mais.
Existem diversas outras peças, não tão conhecidas
do grande público, nas quais o genial escritor insere pessoas
com deficiências. São os casos de Rei Ricardo III, Rei
Henrique IV, Rei Henrique VI, Rei Henrique VIII, Troilus e Créssida,
A Tempestade, Titus Andronicus, Péricles e Otelo. |
Vejamos alguns exemplos ilustrativos,
iniciando pela peça Titus Andronicus. Trata-se de uma tragédia
de proporções vastas. Uma das personagens marcantes
e mais conhecidas é Lavínia, filha de Titus, que tem
suas mãos decepadas e sua língua cortada em trágicas
circunstâncias, por dois amigos da família que tentam
estuprá-la. Além da cena ilustrada ao lado em que
é encontrada quase morta, é inegável que a
figura de Lavínia traz, em todas as cenas das quais participa,
a pungência de sua situação e a revolta do pai,
que não consegue descobrir o autor da barbárie de
que foi vítima. É dramática a cena em que Lavínia,
depois de diversos anos, aparece mostrando enfaticamente um bordado
seu, através do qual consegue indicar os culpados pela sua
situação, mesmo sem ter as mãos para escrever
ou a língua para falar, de certa forma imitando a lenda de
Filomela e Procné, da mitologia grega.
|
Iago
tentando convencer Otelo dos supostos
amores entre Cássio e Desdêmona
|
Na tragédia Otelo
o leitor vive, num crescendo contínuo, a revoltante ação
do personagem Iago que, num leva e traz ininterrupto de suposições,
acusações infundadas e de malícia, consegue
intrigar Otelo contra sua fiel esposa Desdêmona, envolvendo
Cássio, oficial e grande amigo do casal.
Com o desenrolar do drama, em determinada circunstância Cássio
acaba ferido traiçoeiramente na perna. Na escuridão
de uma ruela cipriota Cássio grita desesperado:
- "Estou aleijado para sempre! Socorro! Assassino!"...
Muito embora o leitor não consiga ter uma idéia clara
da gravidade da lesão, da boca de Cássio surgem estas
duas frases:
- "Iago? Ahhh... Fui inutilizado, aniquilado
por vilões!"...
- "Minha perna foi cortada em duas"...
|

O ator inglês Seymor Hicks
como Ricardo III,
no início do século XX
|
Já
na tragédia Rei Ricardo III, Shakespeare faz uma associação
nada sutil entre defeito congênito e maldade, perfídia,
malícia (como na tragédia Tróilus e Créssida,
com a indefinida figura de Térsites).
É histórico que Ricardo III foi,
de fato, um rei inglês. Mas na certa não tinha tantas
e tão graves aberrações como aquelas alegadas
por Shakespeare. No correr da peça ele é identificado
de vez em quando como "montão de ódio",
"sapo", "massa ignóbil e disforme", "tão
disforme de maneiras quanto de corpo" e "rocha fatal e
disforme".
Como é do conhecimento dos amantes das peças de Shakespeare,
este drama é iniciado com um monólogo muito revelador
dos sentimentos desse rei controvertido:
..."Mas eu não fui talhado para habilidades esportivas
nem para cortejar um espelho amoroso. Fui grosseiramente feito e
sem a majestade do amor, para poder pavonear-me diante de uma ninfa
de lascivos meneios. Eu, privado dessa bela preparação,
desprovido de todo encanto pela pérfida natureza, fui feito
disforme, inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo
dos vivos. Sou acabado pela metade, tão imperfeitamente e
fora do normal que os cães ladram quando paro perto deles.
Pois bem, eu, nestes tempos de serena e relaxante paz, não
acho prazer algum em matar o tempo, exceto em olhar minha sombra
no sol e dissertar sobre as minhas deformidades."
|
Fontes:
- Miller, D.S. e Davis, E.H. - "Shakespeare and Orthopaedics",
in Surgery, Gynaecology and Obstetrics - Vol. 28 - 1969
- Kail, Aubrey C., MD - "The Medical Mind of Shakespeare",
in The Ambassadors on Line Magazine - Vol. 8, Issue 2 - July 2005
(http://ambassadors.net/review.htm)
...
|
|